22 de mai. de 2011

Anna

Anna era do tipo de gente que tem o poder de encantar por onde passa.
Parecia que as flores ficavam mais lindas, que o ar ficava mais fresco, que o feijão ficava mais gostoso. Era dotada de um sorriso que faria o melhor dos guardas do rei abrir o quarto do rei e matá-lo se ela pedisse.

Não comia carnes - costume incomum para a época- pois não queria matar nenhum animal.

Usava roupas confortáveis, nada muito bonito, trabalhava na roça com seus pais, e estudava na escola improvisada da cidade, onde a aula era dada pelo padre ( único cidadão que sabia ler e escrever, não só a língua local, mas também em latim) que aproveitava os inícios das aulas para dar a sua catequese.

As habilidades do padre sempre a impressionaram. Como alguém poderia ler e escrever em duas línguas?

Seu vestido mostrava os tornozelos com cuidado, uma mulher com panturrilhas à mostra era uma desesperada por um homem para casar-se. Aos 15 anos, a pequena sociedade já a pressionava para que arrumasse um marido, não que Anna não quisesse, seus seios já eram desenvolvidos o suficiente para aparecerem pressionados contra o tecido do vestido, o que fazia muitos garotões olharem-na com cara de bestas selvagens, simplesmente não queria agora. Queria mesmo era aprender a ler, e procurar algum trambiqueiro para lhe arrumar um bom livro grego, ah os gregos!, queria entender aquela coisa de filosofia, o padre dizia que era coisa do demônio, mas nada mais humano do que o demônio que para ela era uma invenção humana, como aquele papo de que era possível chegar à lua. Haviam terras além dos olhares, sabia que os horizontes escondiam pessoas e histórias incríveis, como o próprio cristo, que o padre sempre agradece no nosso idioma após minutos de enrolação em latim, não entendiam nada do que ele estava falando, e ele poderia estar vendendo-lhes para o demônio se quisesse. Mas era a melhor parte da aula sem dúvida. Ela ria e imaginava o significado de cada palavra que o padre dizia.

Morreu após ser pega, anos depois, lendo A República de Platão, autor considerado um grego blasfemador e como todos os gregos teve sua leitura proibida durante toda a Idade Media, acusada de bruxaria.

O padre que lhe dava aulas falou enrolado em latim pela ultima vez, ela estava amarrada à sua mãe e seu pai na fogueira ( uma bruxa não morre sozinha), de forma irônica, percebeu as enrolações do padre com um tom triste, a cidade estava de luto, mas deviam cremá-la, era a ordem direta do vaticano, quem ousaria desobedecer o vaticano? As bruxas tinham de ser eliminadas de forma cruel, seus pais foram amarrados mais abaixo na fogueira, para que ela os visse morrer antes de alcançar sua morte. Sua mãe agora com 35 anos e já acima da expectativa de vida regional, chorava e não conseguia olhar para a filha. Seu pai, homem forte e sempre sério, olhava sem foco para o horizonte da cidade. O padre terminou a enrolação. Olhou-a nos olhos com lágrimas visíveis e disse: " sempre desconfiei de você Anna, uma pessoa que toma banho todos os dias- uma pessoa limpa não precisa lavar-se tanto, era no que acreditavam na época( espanhóis fedem até hoje)- ler gregos? pra que? se Deus nos mandou o único livro que precisamos ler."

A cidade toda estava lá, era a lei, quem não estivesse era acusado de bruxaria e naquele vilarejo, não haviam muitos eventos destes por décadas, ninguém queria ser o protagonista do próximo, o padre ergueu seu crucifixo e ordenou a todos que erguessem suas mãos direitas, enrolou algo em latim, com voz ríspida e rouca, e leu o édito (documento da época que perdoava heresias como judaísmo e islamismo, desde que a pessoa se convertesse e entregasse à igreja, para a fogueira, seus parceiros de religião), e como ninguém se manifestou, ordenou que acendessem a fogueira.

O feno na base da fogueira estalava com o calor, Anna já podia ouvir seus pais gritando de sofrimento aos seus pés, o cheiro da carne assando de seus pés estava causando-lhe naúseas, seus pais já estavam desmaiados e ela sentia que estava para desmaiar, a morte no fogo não acontece ao desmaiar, você acorda antes de morrer para gritar de dor. Os três gritos foram ouvidos quase juntos, seus pais primeiro e o desespero da notícia a fez começar o seu antes, alguns segundos depois e o seu próprio grito de morte começou. Grito que atormentou a mente do padre até o final dos seus dias.

( Publicado no Quimera Tônica - dia 13/02/2011 )

Nenhum comentário: